O restaurante - parte III
Como parte dos últimos artigos escritos, que dissertavam sobre o planejamento (parte I) e a fase pré-abertura (parte II) de um restaurante, apresento o artigo final dessa singela trilogia da cena gastronômica. Agora sobre a vida como ela é, quando as coisas estão funcionando para valer, a transpiração corre solta e os problemas do dia a dia começam a acontecer. Quem trabalha na área costuma dizer que os problemas são sempre os mesmos, apenas mudando de endereço: gente, abastecimento, padrão de cozinha, manutenção, finanças... enfim, a vida pode ser realmente bastante intensa num restaurante. Que apesar de charmoso, interessante, instigante e atraente pode fazer o programa de TV, Hell’s Kitchen parecer o Teletubbies.
Restaurantes e bares são usualmente vistos como lugares de prazer e indulgências. Locais de histórias e diversão. De encontros e desencontros. Marcados ou casuais. São sedutores demais para quem está sendo recebido. Mas para quem recebe, a história é outra. A demanda e velocidade com que as coisas acontecem podem ser tão intensas, que talvez resida aí, um dos tantos motivos da enorme taxa de mortalidade desse negócio.
Estamos falando de um processo geralmente artesanal de produtos perecíveis, que passam por muitas mãos, nem sempre tão precisas, só fazendo aumentar a possibilidade de falha na entrega final. Recebe, separa, lava, higieniza, corta, pica, processa, cozinha, separa, porciona, embala, congela, descongela, manipula de novo, cozinha de novo, assa, grelha, frita, reduz, prepara, monta e serve... tudo isso com um único comando de “marcha e sai”.
Para cada prato, há um número grande de testes, desenvolvimento de produtos e fornecedores. Pesquisa, testa, prova, pesa, anota, produz, refaz uma, duas, três, várias vezes, escreve receita, ficha técnica, analista custo e precificação, negocia com fornecedor. Treina a equipe na produção, até que todos estejam afinados na execução final. Da criação do prato ao serviço na mesa, há uma verdadeira ilíada!
Se a cozinha é a indústria, o salão é o varejo! Onde os vendedores devem conhecer profundamente sobre produtos, receitas, ingredientes, pratos, vinhos, drinks, café, queijos, sistema. Devem dominar os roteiros de atendimento que precisam ser seguidos no meio do frenesi de um salão lotado, além de terem um “quê” de analistas, psicólogos e pesquisadores, para tentar descobrir como agradar, encantar e conquistar clientes, sem nunca os terem visto uma única vez na vida.
Esse é o grande paradoxo desse negócio. Cheio de rotinas que devem ser executadas à perfeição dia após dia, como o mais consistente dos balés e, ao mesmo tempo, completamente cheio de imprevistos. Em que nossas habilidades e capacidade de lidar com múltiplas funções ao mesmo tempo, fariam inveja a qualquer equilibrista do Cirque du Solei.
E para colocar mais lenha na fogueira, some a isso algumas dezenas de pessoas se conhecendo e convivendo oito ou mais horas por dia, sendo bombardeadas por informações, demandas constantes, cobranças por tempo e execução perfeitas, sem erros, tentando mostrar seu talento para conquistar seu espaço e destaque no time.
Aliás, talvez seja esse o principal desafio, se não o mais importante de todos eles e, aquele que pode transformar, para o bem e para o mal, a atmosfera e o tempo de vida do lugar: a formação da equipe!
Gente, gente, gente e gente... não por acaso, os restaurantes de sucesso e que alcançam o panteão dos grandes campeões (nesse caso, sobreviver por pelo menos 10 anos), são aqueles que conseguem formar equipes homogêneas com algum senso de cultura comum e um serviço de qualidade.
Há gente de todo o tipo, interesse, sonhos e desejos formando a equipe. Os que estão apenas começando a carreira e vivendo sua primeira experiência profissional. Os que já possuem extensa quilometragem rodada e sabem como ninguém, encurtar os caminhos do bom serviço. Aqueles que amam o que fazem, ou o fazem apenas por necessidade. Os que se dedicam muito, com afinco e profissionalismo e, os que fazem qualquer coisa, de qualquer jeito. Os que possuem talento natural e levam jeito para a coisa, e os que não tem jeito e serão apenas passageiros num curto espaço de tempo.
O fato é que formar times leva um tempo danado e exige alguns sacrifícios, além de muita paciência e persistência. Times que jogam juntos não são formados do dia para a noite. Demandam tempo e muita conversa, orientação e direcionamento.
Quando nos propomos a fazer algo que foge do padrão comum então, surgem os ansiosos, que querem participar apenas dos resultados, mas não do processo. Esquecem que é justamente no processo que descobrimos quem realmente merece colher os resultados.
Quando optamos por criar um modelo de gestão de pessoas que realmente começasse de trás para frente, nos esforçando para criar um ambiente de trabalho seguro, é porque acreditamos que a exposição ao risco contante por focar apenas no resultado a qualquer custo, possa desenvolver atitudes individualistas, que prejudiquem o senso de coletividade ou, anda pior, o caráter dos membros da equipe. Resultado é importante. Mas o processo é muito mais!
Por isso aceitamos na cultura da empresa e nos processos para perpetuarmos o negócio e ganharmos reputação. Aceitamos as falhas como parte do processo. Damos a todos o direito de errar, mas o dever de corrigir e querer melhorar continuamente. Sabemos que não dá para acertar sempre. Que ninguém nunca está 100% pronto, mas que todos precisam estar sempre 100% preparados. Quando a equipe sai da rota, corrigimos ao invés de punir. Procuramos despertar níveis maiores de consciência, de forma que a própria equipe crie um ecossistema de autogerenciamento. Naturalmente algumas pessoas vão se destacando e absorvendo mais funções e ganhando mais protagonismo. A própria equipe trata de apontar e expelir aqueles que não se integram a cultura da empresa.
Romper com padrões pré-estabelecidos de um mercado viciado em relações humanas ultrapassadas e que já não fazem mais sentido para aqueles que dedicam, dedicaram ou ainda pretendem dedicar suas carreiras, sempre nos pareceu ser o melhor caminho.
Se teremos sucesso ou não, somente o tempo poderá responder. Não há verdades absolutas, nem nada que não possa ser revisto ou mudados. Procuramos criar uma equipe que esteja disposta a aceitar as mudanças e a fazer os esforços necessários para mudar. Tirar os dizeres de nossa cultura do quadro, e transformá-la em atitudes que devem ser praticadas diariamente. Um restaurante é feito disso. De um turbilhão de sentimentos e emoções diárias. Rotinas intermináveis e imprevistos impensáveis. Do sacrifício, suor e algumas vezes, lágrimas, e do simples prazer de dar carinho, cuidado, atenção e gentileza para desconhecidos, em troca de um sorriso ou um simples “muito obrigado”.
#EMFRENTE!